O primeiro-ministro da Estónia, Andrus Ansip, fará, nos próximos dias 4 e 5 de Dezembro, uma visita oficial a Portugal, no quadro das relações bilaterais entre os dois países. Na bagagem trará certamente a promoção da cultura e do ensino da Língua Portuguesa naquele país.
Ana Paula Zacarias, actual Embaixadora de Portugal em Tallinn, escreveu, na edição do Jornal de Letras, Artes e Ideias, de 25 de Outubro, um artigo sobre a actual situação da língua e cultura portuguesa na Estónia. A ler e a considerar.
Kas sa Räägid Portugali Keelt? (Você Fala Português?)
Se este ano decidir fazer um cruzeiro no Báltico e visitar a lindíssima capital da Estónia, Tallinn, cujo centro histórico se encontra inscrito na Lista do Património Mundial da UNESCO, muito provavelmente ouvirá dizer à chegada tere tulemast (seja bem vindo!). Depois, é possível que o guia o leve a experimentar um licor aqui produzido desde a Idade Média, feito à base de plantas medicinais e, com um sorriso malandro, diga ao erguer o copo: -Terviseks! (Saúde!) …
No entanto, se quiser verificar o significado destas palavras em português, ou buscar um «obrigado» em estónio terá certamente alguma dificuldade uma vez que não existe ainda publicado nenhum dicionário de Português-Estónio-Português.
Esta é uma das muitas coisas que ainda estão por fazer no contexto das relações entre os dois países. Apesar da longa tradição marítima e comercial que nos aproxima, também, muitos dos fios dessa complexa trama histórica que nos une desde há séculos na construção europeia estão por analisar.
Situados nos extremos da Europa, Portugal e a Estónia, hoje parceiros na NATO e na União Europeia, têm em comum muito mais do que a distância geográfica, ou linguística, podem fazer crer.
A aliança entre os reinos escandinavos e o recém-constituído Reino de Portugal teve um papel relevante da construção da nossa nacionalidade e no desenrolar da história das cruzadas do ocidente e da cristianização da Europa.
Em 1214, D. Sancho I decide casar a sua filha Berengária de Portugal com o Rei da Dinamarca, Valdemar II «o Vitorioso». O casamento da neta de D. Afonso Henriques sela um pacto de apoio entre o Reino de Portugal e o Reino da Dinamarca na expansão dos respectivos territórios e na evangelização dos infiéis. Em 1219, Valdemar lança a cruzada contra os últimos povos pagãos da região báltica, entre os quais os eestis, e conquista a cidade de Reval (hoje Tallinn), provavelmente com a participação de alguns cavaleiros portugueses, que acompanharam a princesa até terras nórdicas.
Assim começa a difícil história do povo estónio e da contínua dominação destas terras por dinamarqueses, alemães, suecos, polacos e russos, até à almejada declaração de independência em 1918, dando testemunho de uma fervorosa e bem sucedida luta do povo estónio pela manutenção da sua língua e da sua identidade cultural. Durante todos estes séculos Reval/Tallinn, cidade pertencente à Liga Hansiática, ocupa, pela sua localização estratégica, um lugar importante nas rotas comerciais europeias. Dos portos portugueses chegam aqui vinhos, sal, frutos secos, especiarias que hão-de seguir caminho até ao interior das estepes russas. Segundo algumas fontes, em 1721, podemos mesmo encontrar um judeu de origem portuguesa, António Vieira, que ao serviço do Czar Pedro I, dirige a reconstrução do porto de Tallinn.
Passando por Portugal, no início do séc. XIX, o poeta estónio Guilherme Kiukhelberg, aprende português e maravilha-se com a poesia de Camões. Este interesse por Portugal cresce com o nosso reconhecimento da independência da Estónia em 1918. As artes plásticas, a literatura e música estónia florescem neste período de afirmação nacional e tornam-se conhecidas internacionalmente. Porém, as vicissitudes da Segunda Guerra Mundial vêm infelizmente trazer mais uma vez a anexação da Estónia, que só em 1991 alcança a restauração da sua independência, sendo Portugal um dos primeiros países europeus a reconhecê-la.
Em 1998, a Estónia abriu a sua Embaixada em Lisboa e este ano, 2006, foi a vez de Portugal abrir a sua Representação Diplomática em Tallinn. Se vier fazer o tal cruzeiro pelas terras do sol da meia-noite, dificilmente deixará de ver a nossa nova Embaixada em Tallinn situada num edifício histórico em pleno coração da cidade antiga - assim se cumprem os desígnios da História.
Finalmente juntos na União Europeia, unidos por valores comuns de democracia, inovação e desenvolvimento, Portugal e a Estónia, pequenos países marcados pela proximidade de vizinhos poderosos, partilham igualmente a consciência de quão relevante é a preservação das suas tradições culturais, do seu património histórico e da sua língua como forma de afirmar e manter a sua identidade, sem contudo se fechar aos encontros e às influências decorrentes da sua longa história marítima e comercial.
Num verdadeiro espírito europeísta, para além da sua língua materna, que pertence ao grupo fino-húngrico, muitos estónios falam uma segunda língua seja o russo, o inglês, o finlandês, o alemão, ou mesmo… o português.
Devo dizer que, quando cheguei a Tallinn, há alguns meses atrás, fiquei surpreendida com o interesse que muitas pessoas me manifestaram pela cultura e pela língua portuguesas - fosse porque já tinham visitado o nosso país, sobrepondo «Algarve» a «férias», ou porque conheciam o Brasil, Angola, Moçambique ou Cabo-Verde (e a Cesária Évora!), porque tinham ido ao concerto da Mariza (em 2005) e gostavam de fado, ou porque eram fãs de futebol e faziam rimar «Figo» com «Mundial».
Para alguns tratava-se mesmo de uma «Lusitana Paixão» feita de contrastes, de encontros e desencontros amorosos, de inter-rails e de ERASMUS apenas terminados.
Como me dizia um dos jovens alunos da Prof. Natália Bieck, que aqui lecciona português na Universidade de Tallinn: «Os portugueses e os estónios têm uma coisa no coração que dá jeito para a poesia», e acrescentava: «Poeedil on petlik keel. /Tapetab nii hästi, et ta / ka tõelise valu veel / võib valuna ette petta.», ou seja, o equivalente em estónio a «O poeta é um fingidor./ Finge tão completamente/ que chega a fingir que é dor/ a dor que deveras sente.»
Efectivamente, sob o título «Auto-psühho-Graafia» foi publicada em 1973 a primeira tradução em estónio de uma colectânea de poemas de Fernando Pessoa organizada por Ain Kaalep, aliás também o tradutor de A Relíquia de Eça de Queiroz. A estas duas obras literárias juntam-se apenas duas outras traduções: Domingo à Tarde, de Fernando Namora, traduzido por Meelike Palli, hoje Embaixadora da Estónia na Dinamarca, e uma colectânea de contos de Vitorio Kali intitulada Tupariz e as serpentes do céu.
Infelizmente, o número de obras estónias traduzidas para português é ainda menor, estando apenas disponíveis nas livrarias portuguesas O louco do Czar, de Jaan Kross, e O leiteiro de Mäeküla, de Eduard Vilde.
Estes parcos números pouco têm a ver com falta de tradutores, que os há e bons, ou tão pouco com a falta de leitores atentos em ambos os países, talvez o que falte seja o interesse por parte dos editores e talvez algum apoio institucional que permita a concretização de algumas edições bilingues. Estou certa de que não faltariam leitores na Estónia para o Prémio Nobel Português da Literatura.
Talvez nos possamos deixar inspirar pelo fantástico exemplo dado por Mia Libblik, residente há longos anos em São Paulo, que aos 94 anos traduziu para os seus netos em português o poema épico Kalevipoeg, o equivalente estónio dos nossos Lusíadas.
A existência de mais traduções de autores portugueses em estónio é fundamental para dar resposta ao interesse pela cultura e pela língua portuguesa neste país, onde nos últimos anos o Instituto Camões tem vindo a apoiar o ensino do português nas Universidades de Tallinn e de Tartu. Só neste ano lectivo já se inscreveram cerca de trinta alunos em cada um daqueles cursos, nos níveis médio e de iniciação, e as expectativas dos estudantes relativamente à utilização futura dos seus conhecimentos são muito positivas.
Para além disso, o IC tem vindo a consolidar este apoio com a concessão de bolsas de estudo para especialização, em Portugal, em didáctica de Português Língua Estrangeira.
A implementação do Acordo Cultural, assinado em 2003 pelos dois países, mediante a elaboração de um plano de acção a concretizar em três anos, poderá igualmente ter um papel relevante na divulgação de Portugal e da sua Cultura na Estónia.
Certo é que «só se ama aquilo que se conhece», por isso o ensino da língua deve andar a par e passo com a divulgação mais ampla de todas as vertentes da cultura portuguesa - literatura, artes plásticas, música, dança, etc.
Neste campo, como em muitos outros, a abertura da Embaixada de Portugal em Tallinn pode ajudar a dar um impulso e servir de catalizador para novos e frutuosos contactos entre criadores, artistas e instituições dos dois países. Assim aconteceu ainda este ano, quando do lançamento da Semana de Portugal, no quadro da comemoração do Dia 10 de Junho. A Exposição sobre Azulejaria Portuguesa, apresentada nesta cidade, mais uma vez com o apoio do Instituto Camões, trouxe à Biblioteca Nacional da Estónia muitas centenas de visitantes e possivelmente dará, em breve, lugar à realização de vários ateliers de cerâmica junto da Escola de Belas Artes. Por seu turno, o concerto do pianista Filipe Pinto-Ribeiro, realizado no Museu Medieval de Tallinn, a que assistiram cerca de 300 pessoas, propiciou já um convite feito pelo Teatro Nacional da Estónia àquele pianista e ao seu grupo de música de câmara, para participar no Programa de Comemoração dos Centenários de Schostakovich e de Lopes Graça.
Cinema, música popular, pintura, arquitectura e design são outras tantas áreas que poderão no futuro vir a servir de elo de ligação e a contribuir para um melhor conhecimento mútuo dos dois países.
Esse é aqui o nosso desafio… fazer com que mais e melhor se conheça e se aprecie nestas paragens o nosso país e poder ouvir dizer na rua: «Jah. Ma räägi portugali keelt.» (Sim. Eu falo português!)
Ana Paula Zacarias
Embaixadora de Portugal em Tallinn